domingo, 17 de março de 2024

NÓS E NOSSAS COISAS


Por JOSÉ CIMINO *
 
“COISA” é uma palavra das mais comuns, mas que encerra certo mistério. O que é uma coisa? Por exemplo, o que é um copo? O que faz com que o copo seja copo e não outra coisa? O copo guarda em si a ideia de quem o concebeu e o fez, e isso é a sua essência que se revela no seu aparecer. Cada coisa é a efetivação concreta de uma ideia. Uma “coisa” é a “coisificação” de uma ideia. É cognoscível, porque fruto de uma ideia. Ao conhecê-la, entrevemos, nela, a ideia que ela é. Nossa vida é uma comunhão vital com as “coisas” e, de certo modo, de comunhão com as “ideias” de quem as fez. Ora, vejam que belas verdades as “coisas” nos revelam. Sem elas não vivemos. Entretanto, as “coisas” que entraram na roda da nossa existência, são aquelas que compramos com nosso dinheiro, com o suor do nosso rosto, e com as quais passamos a viver a nosso modo e segundo os nossos gostos. 
 
As “COISAS” do pequeno universo da nossa existência, desde nosso automóvel, desde nossa casa e tudo que a guarnece, nossas roupas e tudo o mais, a partir do momento em que passaram a fazer parte das nossas vidas, não são mais meras “utilidades” ou simples apetrechos ao nosso redor. Ao contrário, o fato de se tornarem meios de nossa instalação no mundo faz com que elas entrem a compor toda a fisionomia do nosso acontecer histórico. Afinal, foram adquiridas com nosso trabalho, o que pressupõe um “domínio original” sobre elas,  a “posse”. A “coisa possuída” como que renasce da sua condição de apenas “apetrecho” para a de marca vital na orla da nossa interioridade. As “coisas” que compramos e que utilizamos no dia a dia adquirem, assim, forte relação vital conosco. 
 
 
Tela de Marise Barros ilustrando arte naïf brasileira
 
 
Entre as “coisas” que, de algum modo, contribuem para nossa instalação no planeta Terra, merece particular atenção: a CASA. A casa, esse minúsculo ponto dentro do planeta, é o marco que assinala o lugar da instalação existencial do ser humano na paisagem do seu entorno. É na “casa” que o homem habita o Planeta e o deve habitar poeticamente. Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843), entre os poetas alemães um dos maiores, escreveu, em um dos seus poemas, que o homem é aquele que habita poeticamente,  tema, aliás, objeto de reflexão por Heidegger. 
 
O que é o “habitar poético”? Com certeza isso acontece quando os ocupantes da casa vivem em harmonia, na paz e no amor, e tudo que a guarnece esteja de tal maneira organizado, que venha a gerar impacto de beleza harmônica e, por consequência, de felicidade. Quando isso ocorre, o homem habita na “verdade da casa”. Essa verdade evoca de novo o domínio original sobre ela, ou seja, a posse. Se a casa, se algo ou tudo que a compõe, ou por furto, ou por roubo ou por outro modo qualquer, mesmo que por força de um Direito equivocadamente aplicado por um juiz, sair da órbita do seu possuidor original, ali “o alheio passa a chorar o seu dono” , conforme nos ensina um dito popular. E esvai-se a “verdade da casa”. O vínculo existencial entre a coisa e seu dono se rompe de modo irremediável. Então, em tal lugar, não mais será possível o habitar poético. Na casa usurpada e nos seus bens também usurpados ecoa, em cada canto e em cada coisa, o silencioso grito de “saudade” do seu possuidor original. 
 
Se houver o “habitar poético na casa, a convivência, nela, se dará no envolvimento do amor. O homem é o ser da convivência. E a casa, por mais simples que o seja, é o palácio da convivência. Por isso, também as casas convivem. Convivem nas cidades, onde parecem rostos humanos enfileirados. Pela manhã, parecem sonhar: espirais de fumaça saindo das chaminés e o cheirinho do café fresco recendendo no espaço. Um sonho de comunhão imaginada. É o “habitar poético acordando para as lides do dia. 
 
Mas, se a casa,  insistimos, de algum modo, for usurpada daquele que sobre ela exerce o “poder original”, nela, jamais será possível o “habitar poético”. E essa “casa”, ao olhar dos transeuntes, torna-se macambúzia, triste, tal como tácito arauto da injustiça. Em cada canto dela, quer seja um casebre, quer seja uma mansão, com tudo que a contém, ressoa a sábia advertência: “o alheio chora o seu dono” ¹.
 
* Professor e filósofo-poeta, presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos e da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras-MG Leste, além de membro efetivo da ABL-Academia Barbacenense de Letras.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA DO GERENTE DO BLOG
 
 
¹ Na sua versão latina, encontra-se o conhecido provérbio Res ubicumque sit pro domino suo clamat.” (Tradução literal: Onde quer que se encontre, clama a coisa pelo seu dono.) Sobre a procedência jurídica do provérbio, [MONTEIRO, 1965, 148-150] esclarece: “Dentre as várias ações que tutelam o direito de propriedade, a mais vigorosa e importante é, sem dúvida, a (ação) de reivindicação (ou ação reivindicatória).  A  ela refere-se o Código Civil, de modo específico, em seu artigo 524: a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem  quer que injustamente os possua. Nesse preceito se depara o preciso objeto da ação de reivindicação [...] que cabe, tão-somente, a quem tenha o domínio, a quem seja dono ou proprietário da coisa. Quem não tem jus in re, devidamente constituído, não pode reivindicar. É a mais típica das ações reais. É a ação real por excelência, por intermédio da qual o proprietário segue a coisa onde quer que esteja, reclamando-a de qualquer possuidor, ou de qualquer pessoa, que não queira deixar livre o exercício do direito dominial. [...] 

 
III. BIBLIOGRAFIA
 
 
MONTEIRO, Washington de Barros: A ação de reivindicação, São Paulo: Portal de Revistas da USP, 1965, vol. 60, nº 10, pp. 148-164.